A Igreja cristã primitiva possuía em alta conta os Dez Mandamentos (Êxodo 20). Nas palavras de Robert M. Grant (1947), “por meio de uma exegese cuidadosa e literal do contexto do Decálogo [os Dez Mandamentos], os primeiros intérpretes cristãos puderam mostrar que apenas o Decálogo havia sido falado por Deus, e que o restante da lei [mosaica] havia sido acrescentado por várias razões. O Decálogo forneceu um meio extremamente valioso de instrução catequética, como o faz ainda hoje. E ainda se percebeu que Jesus não apenas o resumiu, mas foi além dele. Mas desde que Ele foi além, apenas para reforçá-lo, os cristãos não se sentiram livres para rejeitar o Decálogo ou afirmar que a Sua interpretação era de impossível cumprimento.”

Mas o que dizer a respeito de outras leis do Antigo Testamento? Alguns grupos religiosos afirmam que as leis alimentares, conforme esboçadas em Levíticos 11 e Deuteronômio 14 eram “leis de saúde” ou “leis de higiene” que não foram abolidas por Cristo, mas que continuam obrigatórias aos cristãos na Nova Aliança. Nesse artigo, busca-se apresentar um conjunto de citações dos Pais da Igreja a respeito do assunto, para entender como as primeiras gerações de cristãos entenderam a validade ou não de tais requisitos mosaicos. 

Epístola de Barnabé (70?-130? d.C.)

“Moisés disse: ‘Não comereis porco, nem águia, nem gavião, nem corvo, nem peixe algum que não tenha escamas.’ [...] A proibição de comer não é, portanto, mandamento de Deus, pois Moisés falava simbolicamente. Eis o significado do que ele diz sobre o ‘porco’. Não te ligarás a esses homens que se assemelham aos porcos; isto é, que quando vivem na abundância, se esquecem do Senhor; mas na necessidade reconhecem o Senhor. Assim é o porco: enquanto está comendo, ele não conhece seu dono; mas quando está com fome, ele grunhe e, uma vez tendo comido, volta a se calar.”

Clemente de Alexandria (150-215 d.C.)

“O apóstolo diz: ‘tudo quanto se vende no açougue, sem perguntar nada’ [1 Coríntios 10:25], com exceção das coisas mencionadas na epístola católica de todos os apóstolos ‘com o consentimento do Espírito Santo’. Isto está escrito nos Atos dos Apóstolos, e foi transmitido aos fiéis pelas mãos do próprio Paulo, pois eles indicaram ‘que devem necessariamente abster-se das coisas oferecidas aos ídolos, do sangue, das coisas estranguladas e da fornicação.”

Tertuliano (155-220 d.C.)

“A fé, livre em Cristo, não deve abstinência de carnes particulares - nem mesmo à lei judaica. Pois o apóstolo [Paulo] permitiu todo o açougue a todos.”

“O mesmo Deus, portanto, que proibiu carnes também restaurou o uso delas. Pois Ele realmente as havia permitido originalmente.”

“Nós não seguimos os judeus em suas peculiaridades em relação aos alimentos.”

Orígenes (184-253 d.C.)

“Jesus desejava liderar todos os homens por Seu ensino sobre a pura adoração e serviço a Deus. Ele estava ansioso para não colocar nenhum obstáculo ao caminho de muitos que poderiam ser beneficiados pela Cristandade. Portanto, Ele não impôs um código de regras oneroso em relação à alimentação.”

“Os judeus físicos, e os ebionitas (que diferem pouco deles), nos censuram por transgredirmos os mandamentos sobre carnes limpas e imundas.”

Novaciano (200-258 d.C.)

“Quando proíbe que os porcos sejam usados como alimento, [Deus] reprova uma vida suja, impura e no lixo do vício [...] Quem usaria o corpo da doninha como alimento? O objetivo aqui é que [a Lei] reprove o roubo. [..] Quem comeria o falcão, o papagaio ou a águia? Mas a Lei odeia saqueadores e pessoas violentas que vivem pelo crime.”

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“A partir disso, é claro que todas essas coisas [animais limpos e impuros] voltam à sua bênção original, agora que a lei [de Moisés] está terminada.”

“Embora no Evangelho o uso de carnes seja universalmente dado a nós, ainda assim, entende-se que ele nos é dado somente dentro da lei da frugalidade e do autocontrole.”

Lactâncio (240-320 d.C.)

“[Jesus] aboliu a circuncisão e levou embora a necessidade de se abster da carne de porcos [....] No entanto, Ele não fez isso por Seu próprio julgamento, mas de acordo com a vontade de Deus.”

“Quando Deus ordenou aos judeus se absterem [de carne de porco], Ele desejava que eles entendessem especialmente que deveriam se abster de pecados e impurezas. [...] Pois elas [as leis] são dadas de maneira figurada, de forma que sob a figura das coisas físicas, aqueles que são espirituais pudessem ser conhecidos.”

Didascália Siríaca (século III)

“A lei, portanto, é indissolúvel. Agora, a lei consiste nas Dez Palavras e nos Julgamentos, aos quais Jesus prestou testemunho e disse: ‘Um jota ou um til não passará da lei’ [...] Esta é a lei simples e leve, na qual não há fardo, nem distinção de carnes.” 

Constituições Apostólicas (380 d.C.)

“Alguns dos [hereges] ensinam que os homens não devem se casar e que devem se abster de carne e vinho. Em outras palavras, eles afirmam que o casamento, a criação de filhos e comer certos alimentos é abominável. [...] Alguns deles proíbem absolutamente a ingestão de qualquer carne, dizendo que não é a carne de animais brutos, mas de criaturas que têm uma alma racional. [...] Outros deles declaram que devemos abster-nos apenas de carne de porco. No entanto, esses dizem que podemos comer qualquer uma das carnes que são limpas pela lei. Eles também dizem que deveríamos ser circuncidados de acordo com a lei. [...] Agora, todos estes são instrumentos do diabo. Eles são os filhos da ira.”

Referências

Robert M. Grant. The Decalogue in Early Christianity. Harvard Theological Review, v. 40, n. 1, p. 1-17, 1947.

Todas as citações patrísticas foram obtidas a partir da seguinte obra: David B. Bercot (Ed.) A Dictionary of Early Christian Beliefs: A Reference Guide to More Than 700 Topics Discussed by the Early Church Fathers. Peabody: Hendrickson Publishers, 1998. 

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