Aqueles que resistem a acreditar na autoridade da Bíblia muitas vezes apontam passagens que eles acreditam estarem em contradição entre si - ou o que poderíamos chamar de “aparentes contradições”. Em geral, acho que elas são facilmente resolvidas e não são contradições. No entanto, as soluções para algumas são mais fáceis do que para outras. A mais difícil que já encontrei é a aparente contradição de Marcos 6:8 em comparação com Lucas 9:3 e Mateus 10:10.

E ordenou-lhes que nada tomassem para o caminho, senão somente um bordão; nem alforje, nem pão, nem dinheiro no cinto;

Marcos 6:8

E disse-lhes: Nada leveis convosco para o caminho, nem bordões, nem alforje, nem pão, nem dinheiro; nem tenhais duas túnicas.

Lucas 9:3

 

Nem alforjes para o caminho, nem duas túnicas, nem alparcas, nem bordões; porque digno é o operário do seu alimento.

Mateus 10:10

A aparente contradição é que em Marcos os discípulos são instruídos a tomar um bordão (ou cajado), e em Mateus e Lucas eles são instruídos a não tomar um. Parece ser a contradição mais óbvia e direta possível. Talvez a melhor análise de soluções para esse problema ainda seja o artigo  “Staff or No Staff?”, no periódico Catholic Biblical Quarterly, escrito por Barnabas Ahern em julho de 1943.

Ahern oferece as seguintes soluções possíveis:

1) Os pastores palestinos carregavam 2 tipos diferentes de cajado. Um deles era uma bengala fina e leve e o outro um bastão mais curto e grosso que funcionava mais ou menos como um cassetete da polícia. Esses dois implementos muito diferentes eram frequentemente referidos com a mesma palavra grega. Pode-se argumentar que Marcos está permitindo a bengala óbvia que todo mundo levaria em uma jornada, enquanto Lucas e Mateus estão proibindo o implemento de autodefesa. Isso faria sentido com o evangelho de Lucas, já que em 22:36 Jesus diz aos discípulos que tomem todas as coisas que eles foram proibidos quando Jesus os enviou pela primeira vez - com a diferença de que ele diz para eles comprarem uma espada, presumivelmente para defesa pessoal. Ao fazer isso, Lucas enfatiza que Jesus disse a eles para não levarem um instrumento de autodefesa quando os enviou pela primeira vez.

2) Agostinho distinguiu entre um bordão literal e um espiritual. Em numerosas tradições antigas, o bordão era uma espécie de cetro que representava autoridade. Ele raciocinou que os apóstolos deveriam tomar o cajado da autoridade de Deus no Evangelho, e não um bastão literal de autodefesa. Em Mateus, a palavra refere-se a um bordão literal, e em Marcos, ao sentido metafórico da autoridade e poder dados aos apóstolos. (Eu não acho este ponto particularmente atraente.)

3) Charles Burney ofereceu uma solução crítica textual em 1925, observando que a palavra aramaica para “mas” e a palavra aramaica para “e não” são apenas uma letra diferente e que poderia ser facilmente confundida. Várias pessoas especularam que Mateus foi originalmente escrito em aramaico, uma vez que certamente foi escrito para um público judeu, ou que o material de origem deste texto usado em Mateus estava em aramaico. Portanto, a diferença aqui pode ser teoricamente uma corrupção textual. Nesse caso, a doutrina da inerrância nos diria para usar a crítica textual para corrigir o erro, uma vez que não teria existido no manuscrito original.

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4) Em alguns dos manuscritos do evangelho de Mateus, a forma plural de bordão é usada (rabdous) ao invés do singular (rabdon), levando alguns a pensarem que Mateus e Lucas estão rejeitando o acúmulo de vários bordões ou provisões em excesso para uma jornada que deve ser tomada como a mais leve possível. Marcos prefere permitir a bengala única e prática, e nada mais.

5) Uma estrita harmonização verbal pode ser tentada através dos verbos usados nesses versículos. Nem todos os autores bíblicos usam a mesma palavra exatamente da mesma maneira. Ou seja, os autores bíblicos às vezes usam as mesmas palavras de maneiras muito diferentes, como qualquer um de nós. Eles têm padrões de fala, e esses padrões se tornam claros se você estudar tudo o que eles escreveram. Aqui, Mateus usa uma palavra diferente de Marcos e Lucas. A palavra de Mateus, “ktaomai”,quase sempre significa adquirir ou comprar. Marcos usa a palavra “airo” que significa “tomar, pegar ou carregar”. Ou seja, você pode levar um bordão com você, se tiver um, mas não adquirir um. Você não precisa se preparar para a jornada; Deus proverá tudo.

O problema nesta interpretação é que Lucas usa a mesma palavra que Marcos. Portanto, embora esse argumento funcione claramente para a contradição entre Mateus e Marcos, torna-se mais difícil ao comparar Marcos e Lucas. Portanto, a pergunta é: Lucas usa o verbo “airo” da mesma forma que Marcos? Esta é uma pergunta bastante difícil. Em Lucas 10:4 quando Jesus enviou os 72, ele usa um verbo diferente para “pegar” ou “carregar” - o verbo “bastazo”. Marcos não usa esse verbo em lugar nenhum. Marcos usa apenas um verbo para cobrir o conceito de aquisição, compra, retirada e transporte. O grego de Marcos é simples e direto, e ele não usa um vocabulário muito amplo. O vocabulário de Lucas, provavelmente porque ele é um gentio falante natural do grego e um homem letrado, é talvez o mais avançado no Novo Testamento. Lucas usa três verbos diferentes e os usa com significado sobreposto. Portanto, é impossível saber exatamente o que ele deve ter tentado dizer com o uso do “airo” nesse contexto. Mas como ele usa outro verbo apenas um capítulo depois, pode ser que haja uma diferença intencional sutil. No entanto, também pode significar que devemos ver o verbo usado como intercambiável.

Eu não acho que possamos entrar na cabeça de Lucas e entendermos exatamente por que ele escolheu esses verbos. Portanto, eu não consideraria decisivo o uso de Lucas e, em vez disso, buscaria a melhor interpretação para Mateus e Marcos. Esses dois autores usam verbos diferentes que significam coisas diferentes, e, portanto, distinguir entre tomar um bordão que já se possui e ser proibido de adquiri-lo em preparação para a jornada é uma distinção legítima.

É ainda mais importante reconhecermos que Jesus quase certamente falou em aramaico, e é possível que parte do material original sobre Jesus estivesse em aramaico, para começar. Quase certamente, as palavras reais de Jesus e os testemunhos das pessoas que o ouviram pela primeira vez foram transmitidos em aramaico e, portanto, traduzidos para o grego. Parece-me que, com a quantidade de material que temos, devemos esperar alguns desses tipos de problemas. Especialmente quando podemos reconhecer facilmente que Mateus, Marcos e Lucas estão comunicando a mesma coisa: você não deve sair e tomar provisões para sua jornada. Você deve usar a menor quantidade possível de equipamentos, a saber, o que você tem à sua disposição neste momento. Você dependerá das pessoas a quem for e confiará em Deus para suprir suas necessidades. Portanto, algumas tentativas de harmonizar essas passagens se concentram em seu significado, e não nas aparentes contradições das palavras gregas usadas para traduzir o ditado aramaico de Jesus.

Nos últimos 400 anos, estudiosos e escritores incrédulos atacaram a Bíblia de várias maneiras em milhares de textos diferentes. Uma e outra vez suas suposições provaram estar erradas. Às vezes, a resposta vinha da Arqueologia, às vezes, através de uma melhor compreensão do uso da linguagem, às vezes de uma atitude melhor quando se olha o texto, mas as respostas chegaram àqueles que as desejavam. E assim, posso dizer com total honestidade que 20 anos de estudo das supostas “contradições bíblicas” têm consistentemente promovido minha fé na origem inspiradora divina e, portanto, na autoridade da Bíblia. Confio que, ao ler a Bíblia por si mesmo e estudá-la com cuidado, o mesmo será verdadeiro para você.


Traduzido e adaptado a partir de "STAFF OR NO STAFF: THE WORST BIBLE “CONTRADICTION” <https://hpcmadison.com/2018/06/09/staff-or-no-staff-the-worst-bible-contradiction>. 

Nota: No “Manual Popular de Dúvidas, Enigmas e ‘Contradições’ da Bíblia”, Norman Geisler e Thomas Howe também comentam:

“Um exame mais acurado revela que o relato de Marcos (6:8) declara que os discípulos não deveriam levar nada, exceto um bordão, o que um viajante costumava ter. Já o relato de Mateus afirma que eles não deveriam se prover de um novo bordão. Não há discrepância entre esses dois textos. O relato de Marcos diz que eles poderiam levar o bordão que eles tinham, ao passo que o de Mateus diz que eles não deveriam levar um bordão nem uma túnica a mais.

Isso também ocorre com relação às sandálias, quando Mateus os instruiu que não deveriam ser levadas (a mais), enquanto Marcos deixa bem claro que fossem calçados de sandálias. Portanto, não há contradição alguma.”

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